domingo, 18 de julho de 2010

A NAÇÃO MERCANTILISTA – Ensaio Sobre o Brasil - Jorge Caldeira

CALDEIRA, Jorge. A Nação Mercantilista. Ensaio Sobre o Brasil. Editora 34: São Paulo, 1999. (p. 173 – 202)


         - “Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se em andar arranhando ao longo do mar como caranguejos. (...) na época da frase, 1627, seria difícil sustentar empiricamente a afirmação. Os ‘caranguejos’ já davam as caras por todos os meandros da bacia oriental do Prata, varejavam o Araguaia-Tocantins, tinham atravessado o interior do Nordeste (...)” (p. 173)
O autor acredita que existe nesta frase uma divisão qualitativa que separa o sertão e a zona litorânea:
         - “(...) o que importa é o litoral, português e conhecido; o sertão pertence a outro estágio civilizatório, com processos sociais desconhecidos, e cuja elucidação, de qualquer forma, é irrelevante para a história.” (p. 174)
O padre André João Antonil é o mais radical representante desta forma de ver o Brasil. Para ele:
         - “(...) não há sequer a necessidade de apontar para a existência de uma dimensão social e econômica, que se oculta ‘naturalmente’. Tudo que está para além do açúcar se faz fora da sociedade, está no plano natural. Essa exclusão permite uma descrição exemplar do engenho, com um forte apelo – o que ele produz tem significado apenas porque o senhor governa (...). No trabalho dos escravos, há apenas um resquício de significação, justamente em seu ocultamento enquanto objeto da natureza.” (p. 174)
Esta “História dos Senhores” e a ocultação da “História dos escravos” segundo o autor pode ser justificada:
       - “Uma crueza que fazia sentido num tempo em que não se imaginava outro sentido para a Colônia senão o de enriquecer a Metrópole. (...) os interesses econômicos internos do espaço colonial não tinham qualquer sentido para a autoridade metropolitana.” (p. 175)
Nos textos atuais encontra-se uma forte marca de divisão qualitativa da economia:
         - “Mudam é verdade o nome dos pólos – mas, por trás dos conceitos, reforça-se a idéia de que havia dois tipos de economia na Colônia: setor exportador/setor de subsistência (...) sertão pastoril/litoral agrícola, onde ‘a separação é completa’ (...) ‘estrutura bissegmental de economia mercantil e economia natural’ (...)” (p. 175)
         - “A economia colonial aparenta duas vertentes qualitativamente distintas, com uma articulação determinada entre elas: o interior é dependente do setor exportador – e nessa articulação está o sentido de todo o conjunto.”
         - “O açúcar que escoa pelo litoral explica o sistema econômico; o que se passa no sertão é primitivo, ‘economia natural’. (...) para entender o que ocorreu no Brasil, sobretudo no século XVIII, é preciso tomar outro caminho: comparar realidades empíricas sem o peso do olhar dual (...). Em outras palavras, é preciso supor o objeto ‘Brasil’ como sendo de outra natureza, menos ordenado logicamente.” (p. 176)
Para sustentar essa suposição, desenvolveram-se duas séries de argumentos:
· Complexa interconexão de atividades econômicas desenvolvidas internamente para o engenho exportador de açúcar funcionar: Alianças e guerras com nativos e atividades econômicas e militares; cruzamento de informações culturais propiciadas pelos casamentos entre portugueses e índias. (p. 176, 177)
         - “Os resultados do processo de mistura de gentes, em outras palavras, definem algo que vai além do projeto colonial: algo próprio, que acaba sendo característica mais tarde brasileira – e brasileira por diferença. O processo contém determinantes e interesses que estão além daquilo que era planejado, e nisto está sua importância.” (p. 178)
· Comparação do quadro brasileiro aos quadros coloniais do século XVII:
         - “Em relação aos territórios espanhóis, o Brasil apresentava uma divisão de trabalho mais avançada, com os mesmos elementos. Conseguiu-se montar aqui a especialização de uma área geográfica voltada exclusivamente para a produção de cana, em torno do engenho, o que só foi possível graças ao deslocamento das atividades secundárias para outras regiões (...)” (p. 179)
         - “A maior abrangência social (...) e o maior peso econômico do setor interno, comparados a estruturas similares, são fatores relevantes para que se considere o conjunto não como reflexo, mas como um fator próprio da formação social brasileira. (...) A criação de zonas intermediárias ou momentos de aproximação (...) passa a constituir um traço marcante da vida de relações na colônia (...)” (p. 179)
         - “É mameluco o fundamento da miscigenação, e o seu resultado específico mais importante: a capacidade de misturar idéias e costumes (...). O comportamento econômico típico da Colônia era a organização da vida em torno da idéia do enriquecimento – uma possibilidade muito maior no Brasil que em Portugal” (p. 180)
O autor destaca o emprego das formas simbólicas de troca que eram usadas no lugar da moeda e que deveriam estruturar uma produção regular e permanente. Essa produção adquire um caráter de enriquecimento, e este novo objetivo (enriquecer) não era sancionado pela visão metropolitana:
         - “O contínuo aumento da sangria fiscal, agravando já as precárias condições monetárias internas, foi mais duro para algumas regiões. No Nordeste açucareiro, onde a alavancagem era maior, as possibilidades de adaptação eram menores: ficava mais difícil ainda transformar os grandes patrimônios em dinheiro, o que tornou os senhores reféns do garrote metropolitano. Só lhes restou transferir os custos da adaptação, aumentando a pressão sobre os fornecedores de insumos, a fim de ampliar os ganhos nas trocas não-monetárias que subsidiavam o sistema.” (p. 181)
         - “(...) nas regiões em que a alavancagem era menor (...) até mesmo impactos violentos podiam ser suportados por outra via. Foi o que ocorreu em São Paulo. (...) O sertão desconhecido para a autoridade escondia também outro tipo de possibilidade. Ali era possível viver longe de impostos e constrangimentos, quando isto era interessante.” (p. 181)
         - “(...) o fato é que os paulistas já mineravam ouro desde o século XVI, nas minas do Jaraguá: Também exploravam o minério em Cananéia, durante todo o século XVII. Assim, o que talvez explique a ausência do metal em testamentos é a própria cupidez fiscal da Metrópole.”
Pela legislação da época, os metais nobres existentes na colônia eram propriedade do rei:
         - “Obviamente, durante muito tempo, tal legislação não permitiu a declaração da moeda nos testamentos – nem permitiu muitos progressos nas descobertas. (...) A situação mudou por completo em 1694. Conformadas com o fracasso, as autoridades portuguesas mudaram a lei: o descobridor ganhou o direito de propriedade, desde que pagasse impostos ao rei.” (p. 182)
A política de assegurar a propriedade das descobertas através da notificação foi fundamental:
         - “O fim do silêncio em torno dos metais preciosos provocou uma enorme mudança (...) uma expansão do setor ‘interno’ da economia, não exatamente na forma desejada pela autoridade central. A diferença foi que, desta vez, o movimento adquiriu uma amplitude muito maior, tanto no sentido econômico como no cultural.” (p. 183)
A maioria dos descobridores era de São Paulo, mas também havia pessoas vindas de salvador e, até mesmo portugueses:
         - “Escrevendo em 1711, o raggionere Antonil calculava em 30 mil o número dos que se abalançaram atrás do precioso metal em pouco mais de uma década.” (p. 184)
        - “Dependendo dos azares e sortes das descobertas, baianos aliavam-se a reinóis, ou a paulistas, ou a índios – e assim sucessivamente. (...) o início da mineração do ouro foi também uma forma de multiplicar a força do processo de miscigenação.” (p. 185)
         - “A forma monetária estava finalmente ao alcance mais fácil dos homens que deveriam viver numa “economia natural” ou de “subsistência”. (p. 186)
Os mineradores tinham necessidades além do ouro para viver, por isso, houveram mudanças na agricultura de subsistência. As novas roças forneciam farinha de milho e mandioca, carnes, algodão, legumes e outros gêneros às regiões mineradoras. O transporte dessas mercadorias gerava uma nova relação custo/benefício. Houveram tentativas de proibir a venda para fora da cidade, mas nada adiantou:
         - “Muitos senhores de engenho largaram-se para as minas com seus haveres e escravos. Outros preferiam comerciar, apesar de que comércio direto com as minas fora proibido. (...) Até que os níveis de produção de alimentos se ajustassem à crescente demanda das minas, as possibilidades de acumulação de fortunas pelos fornecedores dos mineradores foram imensas (...).” (p. 187)
A demanda a ser suprida era grande, todo o sistema de transporte foi reformulado. O transporte que antes era feito nas costas dos índios, foi substituída pelo transporte em cavalos. Em 1720 surgem notícias de criadores do Sul levando boiadas para a venda em Minas Gerais. O deslocamento de muares para a venda também cresceu. Com o movimento dos tropeiros, interiorizou-se a economia de mercado (p. 188):
       - “Todos os milhares de pontos de pouso de tropeiros que surgiram pela colônia afora eram mercados locais alternativos ao grande proprietário, economia de mercado ao alcance de qualquer um.” (p. 189)
         - “Uma das mercadorias às vezes vendidas pelos tropeiros era a das mais desejadas pelos donos de ouro: os escravos. (...) Com sua política de favorecer a captação de impostos e diminuir ao máximo os custos de manutenção do império, Portugal deixou uma brecha antiga aberta: a permissão para que navios saídos do Brasil fossem buscar escravos nas possessões africanas, recolhendo ali a parte portuguesa dos direitos alfandegários.” (p. 189)
Em 1721, foi estabelecida uma fortaleza na Bahia com o apoio dos comerciantes e do governador. Foi legalizada com o pagamento de impostos no desembarque. Em 1723, comerciantes de Salvador criaram a Mesa do Bem Comum dos Negociantes da Bahia, que organizaria todo o negócio interlocutor junto às autoridades. Durante muito tempo, o comércio de escravos foi uma atividade externa da economia baiana:
         - “Criava demanda para uma série de atividades internas: aguardente, tabacos e búzios, produtos locais, eram as mercadorias de troca. Só nas viagens africanas, eram empregados 24 navios, os quais precisavam ser mantidos, reparados, tripulados e abastecidos a cada viagem. (...) a navegação costeira era bastante desenvolvida, a nova demanda ajudou a criar uma indústria.” (p. 190, 191)
A Bahia fornecia escravos para Minas Gerais, mas o maior abastecedor foi o Rio de Janeiro. Os negócios eram feitos com as possessões portuguesas de Angola e Benguela e como mercadoria de resgate era usada o aguardente de cana, provocando o crescimento de engenhos fluminenses. Em segundo lugar era empregado o tabaco. O tráfico de escravos era um forte componente de contrabando:
       - “(...) o alívio de parte da carga de naus da carreira das Índias nos portos africanos, com o que se levavam tecidos e especiarias tanto para a feitoria oficial de contrabando de Sacramento.” (p. 191)
         - “Já no início da década de 1720, - somente uns poucos navios de traficantes que navegavam em Angola mantinham contato com Portugal: o comércio com o Brasil era horizontal, não triangular -.” (p. 191)
         - “A interferência direta do governador e dos traficantes tradicionais foi derrubada, e a captura entregue aos senhores de guerra nativos, que passaram a dominar por completo a produção maciça de escravos.” (p. 192)
Em 1718 foi encontrada uma nova reserva de ouro em Cuiabá, mas somente em 1721 poucos sobreviventes de uma excursão chegaram ao local. Achar ouro ali era bem mais fácil que encontrar comida. A viagem para esta região era perigosa e exigia muitos cuidados:
       - “Os riscos de perda eram grandes – por fome, guerras ou acidentes. traficar escravos em Mato Grosso era um negócio de alto risco (...).” (p. 193)
A partir de 1742 todo o espaço colonial ficou integrado em uma única economia, com as trocas em função do ouro estendendo-se desde o Rio Grande do Sul até a Bacia Amazônica, pela rota do rio Madeira. Em 1722, Bartolomeu Bueno da Silva partiu de São Paulo e vagou durante três anos pelo Planalto Central, depois de enfrentar motins, divisões e lutas com índios voltou pra São Paulo com 28 quilos de ouro. Em meio século as regiões mineradoras definiram traços gerais de um mercado interno cujos principais produtos eram escravos, farinhas e gado (P. 194, 195):
         - “Os mesmos produtos desenvolvidos no século anterior, porém com uma importante diferença: já não eram mais obtidos através de escambo ou redes de clientelismo (...). Os mesmo agentes do século anterior, mas agora visivelmente inteligíveis como tendo suas ações movidas pela lógica do lucro.” (p. 195)
         - “Além de tornar visível a lógica monetária ao mercado interno, e economia mineradora acrescentou a ele uma nova complexidade. Exigia artesãos especializados, capazes de lidar com o ferro e com técnicas mais apuradas de extração, quando o ouro de aluvião começou a tornar-se mais raro.” (p. 196)
As descrições factuais da revolução no mercado interno e na economia brasileira não foram quantificadas. O ouro permitiu a consolidação de um circuito de trocas em todo o território colonial. Com exceção dos escravos, praticamente todas as mercadorias e serviços envolvidos no circuito eram produzidas localmente e de maneira bastante atomizada. O pequeno comércio varejista não exigia grandes investimentos de capital, o que permitiu seu crescimento. Esse complexo de atividades era submetido a leis de concorrência e relativamente democrático, permitindo a entrada e circulação de pessoas com pequenas posses,. Era o que de mais próximo havia de uma economia capitalista (p. 196, 197): 
       - “Um ponto essencial o diferenciava: o trabalho escravo. A começar do fornecimento, ele disseminava forças concentradoras. Para se entrar no negócio do tráfico, mesmo no escalão mais baixo, era necessário, no mínimo, ter relações ou capital suficiente para atuar como comboieiro ou comissário de um traficante na África, o que já eliminava muitos pretendentes.” (p. 197)
         - “(...) era preciso manter lubrificados os canais internos de distribuição. A ‘produção’ precisava ser escoada o mais rápido possível, sob pena de aumento de custos e da mortalidade.” (p. 198)
         - “O grosso do negócio, tanto na Bahia como no Rio de Janeiro, ficava nas mãos de poucos traficantes, capazes de reunir o grande capital necessário para ele – e capazes de concentrar grandes fortunas. (...) Ao contrário do tráfico para as plantations (...) onde a liquidação dos negócios costumava ser a vista, os traficantes brasileiros em geral continuaram preferindo vender a crédito, mesmo quando poderiam receber em ouro. (...) o fornecimento de crédito fazia diminuir a velocidade de rotação do capital comercial, e portanto sua capacidade de produzir lucros. Mas por outro lado, essa modalidade permitia que, mediante a cobrança de uma taxa de juros mais alta, o vendedor se tornasse ‘sócio’ dos ganhos efetivos produzidos pelo escravo em sua atividade.” (p. 198)
         - “A alta taxa de juros embutida na venda a crédito tinha uma conseqüência desastrosa para o escravo: tornava praticamente obrigatório para o senhor extrair o máximo dele num mínimo de tempo (...). O fornecimento de crédito embutido na venda dos escravos, no entanto, produzia outro efeito crucial: criava novas cadeias de dívida” (p. 199)
         - “A forma de dívida escrita, onde o reconhecimento entre as partes assumia a forma contratual – e portanto desligada da dependência hierárquica ‘privada’ – passou a ser comum a partir do século XVIII.” (p. 199)
         - “No entanto, era difícil estimar a efetividade de tais documentos. (...) Muitas das ações de cobranças eram feitas apenas com base na palavra, o que tornava a possibilidade de reconhecimento efetivo da dívida dependente da confissão oral do devedor.” (p. 200, 201)
         - “A indistinção original das minas dos aventureiros, onde campeia a miscigenação, a busca de oportunidades, o acúmulo de fortunas caracterizam mais os devedores. Por outro lado, o comerciante-credor é descrito não apenas como dono de um negócio, mas como a autoridade legal.” (p. 202)













Referências Bibliográficas:

CALDEIRA, Jorge. A Nação Mercantilista. Ensaio Sobre o Brasil. Editora 34: São Paulo, 1999. (p. 173 – 202)


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