sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Nós que aqui estamos por vós esperamos...

O Historiador é o Rei. Freud a Rainha.
Pequenas Histórias. Grandes Personagens.
Grandes Personagens. Grandes Histórias.
Memória do Breve Século XX.
Paris à noite, Maio de 1912. Nijinski. “L’ aprés – midi d’ um Faune” Théâtre Du Châtelet
No dia seguinte... O balé já não era clássico. A cidade já não cheirava a cavalo. Pelo túnel, o metrô. Pelo fio preto, a fala. Garotas trocavam o corpete pela máquina de escrever. Os quadros já era Picasso. Os sonhos já eram interpretados. Na Rússia. E=mc²
Câmeras Kodak registravam os instantâneos das primeiras gerações que conviveram em seu cotidiano com uma produção em série de idéias, matemática abstrata, maquinários complexos, refinadas bombas e muitos botõezinhos. Nijinski, 1890 – 1950
Alex Anderson – Algum dia em Detroit, 1913. Ford T. O tempo de produção de um carro foi reduzido de 14hs para 1h e 33 minutos. Alex Anderson, 1882 – 1919. Salário: 22 dólares / semana. 12hs por dia, incluso sábado. Domingo: Piquenique. Nunca teve um Ford T. Morreu de Gripe Espanhola.
O Alfaiate. Meio-dia. Paris, 1911. M. Reisfeldt, 1867 – 1911. Profissão: Alfaiate. Objetivo Imediato: voar.
Challenger, 1986. “Nunca dominaremos completamente a natureza, e o nosso organismo corporal, ele mesmo parte desta natureza, permanecerá sempre como uma estrutura passageira, com limitada capacidade de realização e adaptação.” Dr. Freud
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Um século de Família Jones. Primeira Guerra. Tom Jones, o Bisavô, 1896 – 1918. “Em uma guerra não se matam milhares de pessoas. Mata-se alguém que adora de espaguete, outro que é gay, outro que tem uma namorada. Uma acumulação de pequenas memórias...” Cristian Boltanski
Em algum canto da Europa, 1944. “Morrer pela Pátria, pela idéia! Não, isso é fugir da verdade. Ninguém pode imaginar sua própria morte. Matar é o importante. Esta é a fronteira a ser cruzada. Sim, isso é um ato concreto de vontade.” Paolo Gracie – Soldado Italiano
Paul Jones, o Avô, 1916 – 1945.
Robert Jones, o Pai, 1942 – 1971. Vietnã.
Guerra do Golfo, 1991. Robert Jones Junior, 1966 – ?
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Martha. George. Mary. João. Hermann. Antônio. Sabrina. Lev. Pablito...
1903, Trabalhadores do Metrô. 8hs de trabalho. 8hs de Lazer. 8hs de Repouso. Muitos Bigodes.
Leningrado, 1926. Martha Vertovska, 1892 – 1945. Empacotou milhões de cigarros... Depois virou telefonista.
Anos 30. Mary Brinkley, 1912 – 1973. Profissão: Lanterninha. Ator Predileto: Gary Cooper. Hoje, cansada.
New York, 1938. George Gotman, 1906 – 1962. Construiu diversos edifícios em NY. Não tinha problemas de vertigem.
Moscou, 1952. Lev Pankratov, 1905 – 1973. Eleito operário padrão por cinco anos consecutivos. Apaixonou-se por uma italiana, discordou do partido e morreu na Sibéria.
Chile, 1957. O Coveiro. Aos domingos jogava dominó. Pablito Mendoza, 1895 – 1967.
Berlim, 1961. Hermann e Rainer construíram centenas de metros do Muro de Berlim. Quando a construção acabou... Pularam o muro.
China, 1970. Ling Yan, 1948 – 1992. Atividade Principal: Montar bicicletas. Livro de cabeceira: O vermelho. Curriculum: Durante a Revolução Cultural... Executou 3 professores de Matemática.
Serra Pelada, Brasil, 1985. 8.237 Joãos. 12.668 Pedros. 9.525 Josés. Atrás de Ouro. 1 Antônio, 1945 – 1980.
Japão, 1977. Muitas japonesas produzindo muitas TVs. Midori Uyeda, 1955 – 1997. Adorava o Elvis.
Argentina, 1983. Daniel Escobar, 1925 – 1998. Nos anos 70, apertou 9.872.441 parafusos para veículos Renault.
Índia, 1992. Nehru Gupta, 1978 – 1997.
Bolívia, 1994. Juan Domingues, 1903 – 1995. Trabalhador do campo. Nunca viu uma imagem de TV. Nunca foi para a Guerra. Gostava de Coca-Cola.
New York, 1929. O Crash da Bolsa. Paul Davis, 1895 – 1955. O engenheiro que virou maçã.

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Hans e Anna. Sábado, verão de 1914. 2.000 casamentos foram realizados às pressas em Berlim. Aqui a festa de Hans e Anna. Vestido improvisado, lua-de-mel relâmpago, hotel simples. Segunda-feira, Hans estava em um dos inúmeros trens que partiram em direção ao Front. Hans atira bombas. Anna produz bombas.
Mariko Takano, 1923 – 1945. Fazia bolinhos de arroz como ninguém. Takio Takano, 1920 – 1945. Um exímio carteiro. Takao, 1944 – 1945. Naki, 1943 – 1945.
Os homens criam as ferramentas, as ferramentas recriam os homens.” McLuhan
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A Solidão e a Guerra.
Tornamo-nos uma máquina de esperar. No momento esperamos a comida, depois será a correspondência e a qualquer momento uma bomba inimiga, que poderia acabar com nossa ansiosa e tediosa espera.” Heinrich Straken, 1919 – 1942.
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Choque de Guerra.
Silêncio. (Do lat. Silentiu) S.m. 1. Estado de quem se cala. 2. Interrupção de ruído. 3. Taciturnidade. 4. Sigilo, segredo. Pierre Ledoux, 1898 – 1927.
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Kamikaze, Vento Divino.
Papai, mamãe, me desculpem por ser um filho ingrato. Não há pior desgraça do que um filho morrer antes dos pais, isso foge a ordem natural das coisas. No meu silêncio já refleti muito sobre o sentido e a finalidade desta guerra. Mas estar aí junto a vocês seria uma grande humilhação...” Kato Matsuda, 1927 – 1945.
...Conforta-me aquele velho ditado japonês: “A morte é mais leve do que a pluma. A responsabilidade de viver é tão pesada quanto uma montanha.” Adeus, Kato.
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Sudeste Asiático, 1969. Monge budista protesta contra a Guerra do Vietnã. Tashi Iungten, 1925 – 1969.
China, 1989. Praça da Paz Celestial. Chen Yat-sem, 1932 - 1998. Professor de Literatura. Estudioso de Baudelaire.
Brasil, 1975. O Chapéu. A Cidade e a TV. A Polícia.
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Eu. Tu. Ele. Nós. Vós. ELES.
Indolente, mal-humorado e austero. Pouco dinheiro, poucos amigos, poucas mulheres. Nem cigarro, nem bebida. Bigode ralo.
PARANÓIA.
...manifestação de desconfiança, conceito exagerado de si mesmo e desenvolvimento progressivo de idéias de reivindicação, perseguição e grandeza.
Rude, provocador e cínico. Não era afeito à teoria. A mãe queria que fosse padre. Bigode avantajado.
Hitler, Mao Tsé-Tung. Mussolini. Pol Pot. Franco. Salazar. Idi Amin. Ceausescu. Ferdinand Marcos. Pinochet. Reza Pahlevi. Videla. Médici. Mobutu.
Eugene Sandow, 1864 – 1917.
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Alemanha, 1939. FAHRENHEIT 451. Autores degenerados. “Há três tipos de déspota: O que tiraniza o corpo, o Príncipe. O que tiraniza a alma, o Papa. E o que tiraniza o corpo e a alma, o Povo.” Oscar Wilde, 1854 – 1900.
Ao despertar pela manhã após ter tido sonhos agitados, Gregor Samsa encontrou-se em sua própria cama transformado num gigantesco inseto.” Franz Kafka, 1883 – 1924.
O Homem já não é o senhor dentro de sua própria casa.” Sigmund Freud, 1856 – 1939.
O segredo do demagogo é parecer tão tolo quanto sua platéia, de maneira que estas pessoas possam se achar tão espertas quanto ele.” Karl Kraus, 1874 – 1936.
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Ralf Vetter, 1925 – 1979. Membro da Juventude Nazista. Depois da derrota nazista foi criar coelhos no Brasil... Morreu obsessivo e brigado com os vizinhos.
1, 2, 3, 4 Pernas. Fred Astaire, 1899 – 1987. Mané Garrincha, 1933 – 1983.
Viagem através da Lua. Sintonize, se ligue, caia fora! Timothy Leary, 1922 – 1997.
Conforme o último desejo de Timothy, suas cinzas foram lançadas no Espaço. Lucy in the Sky with Diamonds. Para surpresa de Timothy... ...na Lua ocorria um curioso encontro. Che, Gandhi, King e Lennon... ...discutindo assuntos terrestres.
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ELAS.
Atlantic City, 1901.
Doris White, 1885 – 1947. Abusou na ousadia do maiô.
Sandra Michel, 1878 – 1939. Fumando seu primeiro cigarro.
Nos anos 20, sufragetes conquistam direito ao voto.
Todo homem com direito a voto é considerado inimigo, a não ser que tenha sido ativamente educado para ser amigo.” Emmeline Pankhurst, 1872 – 1927.
Estrangulou o marido e foi ao cinema. Lilian Parker, 1870 – 1929.
Anos 20. Josephine Baker, 1906 – 1957.
E se eu te amasse na quarta. Não te amarei na quinta. Isto pode ser verdadeiro. Porque você reclama? Te amei na quarta sim, e daí?” Edna Vincent Millay, Poet, 1892 – 1943.
Minha vela queima dos dois lados. Não durará a noite toda. Mas oh! Meus amigos, ah! Meus inimigos. É de uma luz maravilhosa!
40 anos depois. Cocô Chanel, 1883 – 1971.
Moças na Indústria Bélica. Francesas. Alemãs. Russas. Inglesas. Japonesas. Americanas. Mais Americanas. E quando acaba a guerra. A cozinha. A casa. Os filhos. As roupas. O marido. E a depressão.
Em 1916, Margareth Sanger abriu a primeira clínica de controle de natalidade. Acusada de obscenidade, Margareth foi presa. Margareth Sanger, 1883 – 1966.
Anos 60. Algumas criaram a mini-saia. Outras queimaram sutiãs.
Woodstock, 1969.
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A Luz Elétrica, o Rádio e a Aspirina.
1900. Faltam poucos dias para a inauguração da “Exposição Universal de Paris”. Henry Beau, 1865 – 1916. Profissão: Engenheiro Elétrico Preocupado. Tem apenas 24hs para ligar 5.700 lâmpadas... ...do Palácio da Eletricidade.
1900. Em algum ponto da América. Paul Norman, 1882 – 1900. Não tinha luz elétrica em casa. Morreu na cadeira elétrica.
Casa de um camponês na Rússia. Yuri Gagarin, o Pai. Conheceu a luz elétrica em 1931. Yuri Gagarin, o Filho, 1934 – 1968. Conheceu o Espaço em 1961.
Um Radinho no Vietnã. O Secretário de Defesa anunciou a partida das seguintes unidades: Fuzileiros da Brigada Aérea... ...34ª Tropa de Fuzileiros... ...e ainda... ...a 3ª Brigada da 82ª Tropa... Bill volta para a América... ...foi vender Big Macs & Fritas. Bill Popper, 1943 – 1997.
Bens Adquiridos. A Casa Própria. A TV. O Carro. 17 Eletrodomésticos. Um vício: A Aspirina.
Pouca TV. Muita TV.
Brasil, 1993. Lucelino Silva, 1910 – 1998. Quando conheceu a TV, ela já era colorida. Joselina da Silva, 1959 – 1996. Nunca perdia a sessão da tarde.
4 Domingos. I – 1963. Marcel Duchamp, 1887 – 1968. II – 1907. Edvard Munch, 1863 – 1944. III – 1931. Edward Hopper, 1882 – 1967. IV – 1992. Ninguém. José Leonilson, 1957 – 1993.
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Perto de Deus.
Tibet, 1927. Perto de Deus. Perto de Buda.
Jerusalém, 1964. Perto de Deus. Perto do Muro.
Meca, 1945. Perto de Deus. Ao redor de Alah.
Angola, 1927. Perto de deus. Perto dos Orixás.
Índia, 1902. Perto de Deus. Perto do Vento.
Venezuela, 1946. Deus espanta o Diabo.
Portugal, 1968. Deus perto dos pequenos problemas humanos.
Em algum campo de batalha, 1917. Deus perto do Inferno.
Em alguma esquina do Hemisfério Sul. À espera de Deus.
Rússia, 1922. O templo de Deus é transformado em Repartição Pública Vermelha.
Brasil, 1980. Arthur Bispo do Rosário, 1922 – 1994. Fez uma roupa especial para se encontrar com Deus.
Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz.” Maiakovski, 1907.
“Nós que aqui estamos por vós esperamos.”

[Marcelo Masagão - 1998]

domingo, 18 de julho de 2010

O Império Luso Brasileiro (1750-1822) - Cultura

A NAÇÃO MERCANTILISTA – Ensaio Sobre o Brasil - Jorge Caldeira

CALDEIRA, Jorge. A Nação Mercantilista. Ensaio Sobre o Brasil. Editora 34: São Paulo, 1999. (p. 173 – 202)


         - “Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se em andar arranhando ao longo do mar como caranguejos. (...) na época da frase, 1627, seria difícil sustentar empiricamente a afirmação. Os ‘caranguejos’ já davam as caras por todos os meandros da bacia oriental do Prata, varejavam o Araguaia-Tocantins, tinham atravessado o interior do Nordeste (...)” (p. 173)
O autor acredita que existe nesta frase uma divisão qualitativa que separa o sertão e a zona litorânea:
         - “(...) o que importa é o litoral, português e conhecido; o sertão pertence a outro estágio civilizatório, com processos sociais desconhecidos, e cuja elucidação, de qualquer forma, é irrelevante para a história.” (p. 174)
O padre André João Antonil é o mais radical representante desta forma de ver o Brasil. Para ele:
         - “(...) não há sequer a necessidade de apontar para a existência de uma dimensão social e econômica, que se oculta ‘naturalmente’. Tudo que está para além do açúcar se faz fora da sociedade, está no plano natural. Essa exclusão permite uma descrição exemplar do engenho, com um forte apelo – o que ele produz tem significado apenas porque o senhor governa (...). No trabalho dos escravos, há apenas um resquício de significação, justamente em seu ocultamento enquanto objeto da natureza.” (p. 174)
Esta “História dos Senhores” e a ocultação da “História dos escravos” segundo o autor pode ser justificada:
       - “Uma crueza que fazia sentido num tempo em que não se imaginava outro sentido para a Colônia senão o de enriquecer a Metrópole. (...) os interesses econômicos internos do espaço colonial não tinham qualquer sentido para a autoridade metropolitana.” (p. 175)
Nos textos atuais encontra-se uma forte marca de divisão qualitativa da economia:
         - “Mudam é verdade o nome dos pólos – mas, por trás dos conceitos, reforça-se a idéia de que havia dois tipos de economia na Colônia: setor exportador/setor de subsistência (...) sertão pastoril/litoral agrícola, onde ‘a separação é completa’ (...) ‘estrutura bissegmental de economia mercantil e economia natural’ (...)” (p. 175)
         - “A economia colonial aparenta duas vertentes qualitativamente distintas, com uma articulação determinada entre elas: o interior é dependente do setor exportador – e nessa articulação está o sentido de todo o conjunto.”
         - “O açúcar que escoa pelo litoral explica o sistema econômico; o que se passa no sertão é primitivo, ‘economia natural’. (...) para entender o que ocorreu no Brasil, sobretudo no século XVIII, é preciso tomar outro caminho: comparar realidades empíricas sem o peso do olhar dual (...). Em outras palavras, é preciso supor o objeto ‘Brasil’ como sendo de outra natureza, menos ordenado logicamente.” (p. 176)
Para sustentar essa suposição, desenvolveram-se duas séries de argumentos:
· Complexa interconexão de atividades econômicas desenvolvidas internamente para o engenho exportador de açúcar funcionar: Alianças e guerras com nativos e atividades econômicas e militares; cruzamento de informações culturais propiciadas pelos casamentos entre portugueses e índias. (p. 176, 177)
         - “Os resultados do processo de mistura de gentes, em outras palavras, definem algo que vai além do projeto colonial: algo próprio, que acaba sendo característica mais tarde brasileira – e brasileira por diferença. O processo contém determinantes e interesses que estão além daquilo que era planejado, e nisto está sua importância.” (p. 178)
· Comparação do quadro brasileiro aos quadros coloniais do século XVII:
         - “Em relação aos territórios espanhóis, o Brasil apresentava uma divisão de trabalho mais avançada, com os mesmos elementos. Conseguiu-se montar aqui a especialização de uma área geográfica voltada exclusivamente para a produção de cana, em torno do engenho, o que só foi possível graças ao deslocamento das atividades secundárias para outras regiões (...)” (p. 179)
         - “A maior abrangência social (...) e o maior peso econômico do setor interno, comparados a estruturas similares, são fatores relevantes para que se considere o conjunto não como reflexo, mas como um fator próprio da formação social brasileira. (...) A criação de zonas intermediárias ou momentos de aproximação (...) passa a constituir um traço marcante da vida de relações na colônia (...)” (p. 179)
         - “É mameluco o fundamento da miscigenação, e o seu resultado específico mais importante: a capacidade de misturar idéias e costumes (...). O comportamento econômico típico da Colônia era a organização da vida em torno da idéia do enriquecimento – uma possibilidade muito maior no Brasil que em Portugal” (p. 180)
O autor destaca o emprego das formas simbólicas de troca que eram usadas no lugar da moeda e que deveriam estruturar uma produção regular e permanente. Essa produção adquire um caráter de enriquecimento, e este novo objetivo (enriquecer) não era sancionado pela visão metropolitana:
         - “O contínuo aumento da sangria fiscal, agravando já as precárias condições monetárias internas, foi mais duro para algumas regiões. No Nordeste açucareiro, onde a alavancagem era maior, as possibilidades de adaptação eram menores: ficava mais difícil ainda transformar os grandes patrimônios em dinheiro, o que tornou os senhores reféns do garrote metropolitano. Só lhes restou transferir os custos da adaptação, aumentando a pressão sobre os fornecedores de insumos, a fim de ampliar os ganhos nas trocas não-monetárias que subsidiavam o sistema.” (p. 181)
         - “(...) nas regiões em que a alavancagem era menor (...) até mesmo impactos violentos podiam ser suportados por outra via. Foi o que ocorreu em São Paulo. (...) O sertão desconhecido para a autoridade escondia também outro tipo de possibilidade. Ali era possível viver longe de impostos e constrangimentos, quando isto era interessante.” (p. 181)
         - “(...) o fato é que os paulistas já mineravam ouro desde o século XVI, nas minas do Jaraguá: Também exploravam o minério em Cananéia, durante todo o século XVII. Assim, o que talvez explique a ausência do metal em testamentos é a própria cupidez fiscal da Metrópole.”
Pela legislação da época, os metais nobres existentes na colônia eram propriedade do rei:
         - “Obviamente, durante muito tempo, tal legislação não permitiu a declaração da moeda nos testamentos – nem permitiu muitos progressos nas descobertas. (...) A situação mudou por completo em 1694. Conformadas com o fracasso, as autoridades portuguesas mudaram a lei: o descobridor ganhou o direito de propriedade, desde que pagasse impostos ao rei.” (p. 182)
A política de assegurar a propriedade das descobertas através da notificação foi fundamental:
         - “O fim do silêncio em torno dos metais preciosos provocou uma enorme mudança (...) uma expansão do setor ‘interno’ da economia, não exatamente na forma desejada pela autoridade central. A diferença foi que, desta vez, o movimento adquiriu uma amplitude muito maior, tanto no sentido econômico como no cultural.” (p. 183)
A maioria dos descobridores era de São Paulo, mas também havia pessoas vindas de salvador e, até mesmo portugueses:
         - “Escrevendo em 1711, o raggionere Antonil calculava em 30 mil o número dos que se abalançaram atrás do precioso metal em pouco mais de uma década.” (p. 184)
        - “Dependendo dos azares e sortes das descobertas, baianos aliavam-se a reinóis, ou a paulistas, ou a índios – e assim sucessivamente. (...) o início da mineração do ouro foi também uma forma de multiplicar a força do processo de miscigenação.” (p. 185)
         - “A forma monetária estava finalmente ao alcance mais fácil dos homens que deveriam viver numa “economia natural” ou de “subsistência”. (p. 186)
Os mineradores tinham necessidades além do ouro para viver, por isso, houveram mudanças na agricultura de subsistência. As novas roças forneciam farinha de milho e mandioca, carnes, algodão, legumes e outros gêneros às regiões mineradoras. O transporte dessas mercadorias gerava uma nova relação custo/benefício. Houveram tentativas de proibir a venda para fora da cidade, mas nada adiantou:
         - “Muitos senhores de engenho largaram-se para as minas com seus haveres e escravos. Outros preferiam comerciar, apesar de que comércio direto com as minas fora proibido. (...) Até que os níveis de produção de alimentos se ajustassem à crescente demanda das minas, as possibilidades de acumulação de fortunas pelos fornecedores dos mineradores foram imensas (...).” (p. 187)
A demanda a ser suprida era grande, todo o sistema de transporte foi reformulado. O transporte que antes era feito nas costas dos índios, foi substituída pelo transporte em cavalos. Em 1720 surgem notícias de criadores do Sul levando boiadas para a venda em Minas Gerais. O deslocamento de muares para a venda também cresceu. Com o movimento dos tropeiros, interiorizou-se a economia de mercado (p. 188):
       - “Todos os milhares de pontos de pouso de tropeiros que surgiram pela colônia afora eram mercados locais alternativos ao grande proprietário, economia de mercado ao alcance de qualquer um.” (p. 189)
         - “Uma das mercadorias às vezes vendidas pelos tropeiros era a das mais desejadas pelos donos de ouro: os escravos. (...) Com sua política de favorecer a captação de impostos e diminuir ao máximo os custos de manutenção do império, Portugal deixou uma brecha antiga aberta: a permissão para que navios saídos do Brasil fossem buscar escravos nas possessões africanas, recolhendo ali a parte portuguesa dos direitos alfandegários.” (p. 189)
Em 1721, foi estabelecida uma fortaleza na Bahia com o apoio dos comerciantes e do governador. Foi legalizada com o pagamento de impostos no desembarque. Em 1723, comerciantes de Salvador criaram a Mesa do Bem Comum dos Negociantes da Bahia, que organizaria todo o negócio interlocutor junto às autoridades. Durante muito tempo, o comércio de escravos foi uma atividade externa da economia baiana:
         - “Criava demanda para uma série de atividades internas: aguardente, tabacos e búzios, produtos locais, eram as mercadorias de troca. Só nas viagens africanas, eram empregados 24 navios, os quais precisavam ser mantidos, reparados, tripulados e abastecidos a cada viagem. (...) a navegação costeira era bastante desenvolvida, a nova demanda ajudou a criar uma indústria.” (p. 190, 191)
A Bahia fornecia escravos para Minas Gerais, mas o maior abastecedor foi o Rio de Janeiro. Os negócios eram feitos com as possessões portuguesas de Angola e Benguela e como mercadoria de resgate era usada o aguardente de cana, provocando o crescimento de engenhos fluminenses. Em segundo lugar era empregado o tabaco. O tráfico de escravos era um forte componente de contrabando:
       - “(...) o alívio de parte da carga de naus da carreira das Índias nos portos africanos, com o que se levavam tecidos e especiarias tanto para a feitoria oficial de contrabando de Sacramento.” (p. 191)
         - “Já no início da década de 1720, - somente uns poucos navios de traficantes que navegavam em Angola mantinham contato com Portugal: o comércio com o Brasil era horizontal, não triangular -.” (p. 191)
         - “A interferência direta do governador e dos traficantes tradicionais foi derrubada, e a captura entregue aos senhores de guerra nativos, que passaram a dominar por completo a produção maciça de escravos.” (p. 192)
Em 1718 foi encontrada uma nova reserva de ouro em Cuiabá, mas somente em 1721 poucos sobreviventes de uma excursão chegaram ao local. Achar ouro ali era bem mais fácil que encontrar comida. A viagem para esta região era perigosa e exigia muitos cuidados:
       - “Os riscos de perda eram grandes – por fome, guerras ou acidentes. traficar escravos em Mato Grosso era um negócio de alto risco (...).” (p. 193)
A partir de 1742 todo o espaço colonial ficou integrado em uma única economia, com as trocas em função do ouro estendendo-se desde o Rio Grande do Sul até a Bacia Amazônica, pela rota do rio Madeira. Em 1722, Bartolomeu Bueno da Silva partiu de São Paulo e vagou durante três anos pelo Planalto Central, depois de enfrentar motins, divisões e lutas com índios voltou pra São Paulo com 28 quilos de ouro. Em meio século as regiões mineradoras definiram traços gerais de um mercado interno cujos principais produtos eram escravos, farinhas e gado (P. 194, 195):
         - “Os mesmos produtos desenvolvidos no século anterior, porém com uma importante diferença: já não eram mais obtidos através de escambo ou redes de clientelismo (...). Os mesmo agentes do século anterior, mas agora visivelmente inteligíveis como tendo suas ações movidas pela lógica do lucro.” (p. 195)
         - “Além de tornar visível a lógica monetária ao mercado interno, e economia mineradora acrescentou a ele uma nova complexidade. Exigia artesãos especializados, capazes de lidar com o ferro e com técnicas mais apuradas de extração, quando o ouro de aluvião começou a tornar-se mais raro.” (p. 196)
As descrições factuais da revolução no mercado interno e na economia brasileira não foram quantificadas. O ouro permitiu a consolidação de um circuito de trocas em todo o território colonial. Com exceção dos escravos, praticamente todas as mercadorias e serviços envolvidos no circuito eram produzidas localmente e de maneira bastante atomizada. O pequeno comércio varejista não exigia grandes investimentos de capital, o que permitiu seu crescimento. Esse complexo de atividades era submetido a leis de concorrência e relativamente democrático, permitindo a entrada e circulação de pessoas com pequenas posses,. Era o que de mais próximo havia de uma economia capitalista (p. 196, 197): 
       - “Um ponto essencial o diferenciava: o trabalho escravo. A começar do fornecimento, ele disseminava forças concentradoras. Para se entrar no negócio do tráfico, mesmo no escalão mais baixo, era necessário, no mínimo, ter relações ou capital suficiente para atuar como comboieiro ou comissário de um traficante na África, o que já eliminava muitos pretendentes.” (p. 197)
         - “(...) era preciso manter lubrificados os canais internos de distribuição. A ‘produção’ precisava ser escoada o mais rápido possível, sob pena de aumento de custos e da mortalidade.” (p. 198)
         - “O grosso do negócio, tanto na Bahia como no Rio de Janeiro, ficava nas mãos de poucos traficantes, capazes de reunir o grande capital necessário para ele – e capazes de concentrar grandes fortunas. (...) Ao contrário do tráfico para as plantations (...) onde a liquidação dos negócios costumava ser a vista, os traficantes brasileiros em geral continuaram preferindo vender a crédito, mesmo quando poderiam receber em ouro. (...) o fornecimento de crédito fazia diminuir a velocidade de rotação do capital comercial, e portanto sua capacidade de produzir lucros. Mas por outro lado, essa modalidade permitia que, mediante a cobrança de uma taxa de juros mais alta, o vendedor se tornasse ‘sócio’ dos ganhos efetivos produzidos pelo escravo em sua atividade.” (p. 198)
         - “A alta taxa de juros embutida na venda a crédito tinha uma conseqüência desastrosa para o escravo: tornava praticamente obrigatório para o senhor extrair o máximo dele num mínimo de tempo (...). O fornecimento de crédito embutido na venda dos escravos, no entanto, produzia outro efeito crucial: criava novas cadeias de dívida” (p. 199)
         - “A forma de dívida escrita, onde o reconhecimento entre as partes assumia a forma contratual – e portanto desligada da dependência hierárquica ‘privada’ – passou a ser comum a partir do século XVIII.” (p. 199)
         - “No entanto, era difícil estimar a efetividade de tais documentos. (...) Muitas das ações de cobranças eram feitas apenas com base na palavra, o que tornava a possibilidade de reconhecimento efetivo da dívida dependente da confissão oral do devedor.” (p. 200, 201)
         - “A indistinção original das minas dos aventureiros, onde campeia a miscigenação, a busca de oportunidades, o acúmulo de fortunas caracterizam mais os devedores. Por outro lado, o comerciante-credor é descrito não apenas como dono de um negócio, mas como a autoridade legal.” (p. 202)













Referências Bibliográficas:

CALDEIRA, Jorge. A Nação Mercantilista. Ensaio Sobre o Brasil. Editora 34: São Paulo, 1999. (p. 173 – 202)


O ESCRAVISMO COLONIAL - Jacob Gorender

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978. (p. 53-87 e 164-171)


CAPÍTULO I – ESCRAVISMO COLONIAL – MODO DE PRODUÇÃO HISTORICAMENTE NOVO:
- “Com o descobrimento no ano de 1500 e a subseqüente colonização, puseram-se, uma diante da outra duas formações sociais heterogêneas: a dos Conquistadores europeus e a das tribos autóctones.” (p. 53)
               O autor cita Marx. E segundo Marx, existem três possibilidades nas conquistas. Porém, para o autor, na América nenhuma das três possibilidades se concretizou (p. 53): 
- “O modo de produção predominante no Portugal da época, não se transferiu ao país conquistado. (...) O modo de produção resultante da conquista – o escravismo colonial – não pode ser considerado uma síntese dos modos de produção preexistentes em Portugal e no Brasil.” (p. 54)
- “O estudo da estrutura e da dinâmica do modo de produção escravista colonial (...) demonstrará o que desde logo vem afirmando, ou seja, que se tratou de um modo de produção historicamente novo (...)” (p. 54, 55)
                   O autor utiliza algumas citações de Marx sobre o emprego do trabalho escravo e sobre o aspecto anômalo que constituiu o escravismo americano para ele (Marx) a princípio. Porém, que em O Capital, já é uma tese totalmente ausente. Para o autor, houve um amadurecimento nas idéias de Marx, a respeito da escravidão. (p. 55 e 56)
                  O autor expõe sua opinião sobre a idéia de capitalismo anômalo (p. 57):
- (...) na questão do escravismo americano, considero inaceitável a tese do caráter capitalista, anômalo ou não. Tanto mais, adiciono a título de reforço, que o próprio Marx se encarregou de demonstrar essa inaceitabilidade com o que sobre o assunto escreveu em sua obra principal.” (p. 57)
                 Sobre a idéia de Modo de produção arcaico (Genovese):
- “Pela sua escala, o escravismo mediterrâneo antigo, sobretudo o romano. Há em ambos, de fato, o traço comum do trabalho escravo como tipo dominante de exploração da mão-de-obra. Mas a estrutura e a dinâmica forma distintas em um e outro, tanto que a sociedade imperial romana se defrontou com o impasse representado pela impossibilidade de evolução do escravismo patriarcal arcaico ao escravismo mercantil moderno.” (p. 58)

CAPÍTULO II- A CATEGORIA ESCRAVIDÃO:
                 O autor usa argumentos de Aristóteles e Montesquieu para caracterizar o escravo:
- “O escravo, instrumento vivo como todo trabalhador, constitui ademais “uma propriedade viva”. A noção de propriedade implica a de sujeição a alguém fora dela: o escravo está sujeito ao senhor a quem pertence.” (p. 60)
- “A escravidão propriamente dita é o estabelecimento de um direito que torna um homem completamente dependente do outro, que é o senhor absoluto de sua vida e seus bens.” (p. 61)
                     O primeiro atributo do ser escravo é ser propriedade e daí, surgem outros dois atributos: perpetuidade (ser escravo por toda a vida) e hereditariedade (transmitir essa condição à seus filhos). Esse tipo de escravidão, “ser propriedade perpétua e hereditária” seria a forma completa de escravidão. A forma incompleta seria quando a escravidão cessasse após um determinado tempo e não fosse transmitida aos filhos.  (p. 61, 62)
                 Gorender cita Charles Parain ao falar de escravidão geral, conceito que não teria sido aprofundado por Marx:
- “Charles Parain, por exemplo, lança mão do conceito, separando a “escravidão geral” da “escravidão propriamente dita”. A primeira se manifestaria no recrutamento forçado de trabalhadores pelo Estado para a execução de obras de interesse público, como é peculiar do modo de produção asiático. Na segunda teríamos o escravo como propriedade privada, comprado, mantido e explorado por um empresário particular.” (p. 62)
                   Idéia de escravo como “coisa” (p. 63):
- “Mas o escravo, sendo uma propriedade, também possui corpo, aptidões intelectuais, subjetividade – é,em suma,um ser humano. Perderá ele o ser humano ao se tornar propriedade, ao se coisificar?” (p. 63)
- “O boi serve de escravo aos pobres.” Aristóteles (p.64)
- “Os negros eram marcados já na África, antes do embarque, e o mesmo se fazia no Brasil, até o final da escravidão.” (p. 64)
- “O primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra seu senhor à fuga do cativeiro. Em contrapartida, ao reconhecer a responsabilidade penal dos escravos, a sociedade escravista os reconhecia como homens: Além de incluí-los no direito das coisas, submetia-os à legislação penal.” (p. 65)
                   O direito escravista sofre modificações que limitavam o domínio do senhor e reconheciam de certo modo a condição humana do escravo (p. 68):
- “Quanto mais acentuado o caráter mercantil de uma economia escravista, o que se deu sobretudo nas colônias americanas, tanto mais forte a tendência a extremar a coisificação do escravo. As modificações jurídicas limitadoras dessa tendência só podiam ter efetivação concreta muito relativa nos domínios agrícolas isolados, onde a supremacia do senhor sobre o escravo não padecia de restrições práticas.” (p. 68, 69)
                   Duas culturas e uma mesma forma para tratar o escravo: Aristóteles: “Três coisas são a considerar no escravo: o trabalho, o castigo e o alimento.” Eclesiastes: “Ao escravo, pão, correção e trabalho. (p. 69)
                   Para o autor, existe uma associação natural entre trabalho e castigo do ponto de vista do escravocrata, e esse castigo seria necessário e justo:
- “De qualquer maneira, não devemos supor tivessem os senhores, interesse em inutilizar seus escravos que, afinal,como dizia o livro Bíblico,eram seu dinheiro.” (p. 71)
                    A fiscalização do trabalho escravo era realizada pelo Feitor, e este seria um gasto improdutivo, porém necessário. Gorender novamente cita Marx para expor esta idéia (p. 72):
- “...este trabalho de vigilância é necessário em todos os modos de produção que repousam sobre a oposição entre o trabalhador,enquanto produtor direto,e o proprietário dos meios de produção. Tanto maior esta oposição, tanto maior será o papel que desempenha este trabalho de vigilância. Ele atinge, em conseqüência , seu máximo no sistema escravista.” (p. 72)
                    A idéia de que o trabalho dignifica o homem é expressa por Hegel, e citada pelo autor. E o autor destaca a conquista de independência da consciência do escravo através de seu trabalho (p. 73):
- “(...) alcança então a consciência de ser ela própria em si e para si. Enquanto o senhor apenas desfruta do produto do trabalho, consome-o,porém não o cria, o escravo,ao contrário,entretém com a coisa, com o objeto do trabalho, uma relação essencial.” (p. 73)
                    Considerações sobre os tipos de trabalhadores escravos (p. 74, 75, 76, 77):
- “Considerando em sua massa, sobretudo nos domínios agrícolas, o escravo era um mau trabalhador, apto apenas a tarefas simples, de esforço braçal sem qualificação. (...) ao contrário da classe dos operários livres, os escravos como classe eram incapazes de ascensão técnica em massa. Em contrapartida, o escravo vivia como consumidor irresponsável.” (p. 74, 75)
- “A escravidão desenvolveu-se em sociedades de forte predominância agrária. A grande maioria dos escravos destinava-se, portanto, ao trabalho nos estabelecimentos agrícolas e neles residia (...)” (p. 75)
- “Nas cidades, a sorte era menos dura para o escravo e seu emprego se diversificava. (...) No Brasil, os mestres artesãos habitualmente se serviam de escravos treinados e, por isso, mais caros.” (p. 75)
- “Encontramos, por isso, escravos trabalhando em oficina própria ou montada pelo senhor, realizando pequenos negócios nas ruas, prestando serviços manuais contratados por terceiros. (...) Numerosos escravos urbanos desfrutavam de liberdade de locomoção de certa latitude, negada aos escravos rurais.” (p. 76)
- “Por fim, uma categoria especial foi sempre a dos escravos domésticos, a serviço pessoal da família do senhor nas residências rurais ou urbanas, fosse no Oriente, na Antiguidade Greco-Romana ou nas colônias do continente americano. (...) enquanto no Brasil os escravos executavam quase apenas as funções do trabalho manual,ascendendo quando muito a tarefas de capatazia, excepcionalmente de administração de um estabelecimento agrícola,os escravos, na casa romana,supriram, de modo regular,as funções de mordomos, professores, médicos, artistas,literatos, secretários,copistas,etc.” (p. 77)
                   O escravo como propriedade:
- “O escravismo implica um mecanismo de comercialização que inclui o tráfico de importação, os mercados públicos e as vendas privadas de escravos. (...)m a família escrava não recebia reconhecimento civil.” (p. 78)
- “Assim,pelo direito de propriedade que neles tem, escreveu Perdigão Malheiro, pode o senhor alugar os escravos, emprestá-los, vendê-los, doá-los, transmiti-los por herança ou legado constituí-los em penhor ou hipoteca, desmembrar da sua propriedade o usufruto, exercer, enfim, todos os direitos legítimos de verdadeiro dono ou proprietário.” (p. 78)
- “(...) em todos os países escravistas, antigos e modernos, cresceu o número dos libertos, subordinados também eles a uma condição especial, que os inferiorizava com relação aos homens nascidos livres.” (p. 79)
- “Os filhos de escravas deviam constituir frutos da propriedade, à maneira das crias dos animais irracionais.” (p. 80)
                 Escravidão, servidão da gleba e trabalho assalariado:
- “O que designamos por escravidão e escravo tinha, entre os romanos, as designações de servitus e servus.” (p.80)
- “De acordo com Charles Verlinden, o termo sclavus surgiu entre os germanos, num limitado período dos séculos X e XI, aplicado aos cativos de origem eslava, trazidos do Oriente europeu. Sclavus (em alemão, Sklave) indicava,portanto, o cativo estrangeiro, procedente de país eslavo, e o distinguia do servus, da própria nacionalidade germânica. (...) no século XIII, os venezianos e genoveses passaram a carrear à Bacia do Mediterrâneo um fluxo constante de cativos do Mar Negro,o termo sclavus lhes foi aplicado de novo e se tornou de uso corrente na Itália, Daí se estendeu a outros países do Ocidente,sendo adotado nos textos franceses e ingleses a fim de distinguir os servos nativos dos cativos estrangeiros.” (p. 81)
- “O que a escravidão e servidão possuem em comum é a coação extra-econômica do produtor direto, embora suas modalidades concretas sejam diferentes para o escravo e para o servo.” (p. 83)
- “O trabalhador assalariado, consubstancial ao capitalismo, representa o primeiro tipo de trabalhador explorado do qual desaparecem os últimos resíduos de apropriação pessoal por parte do explorador e que, por isso, integra o processo da produção como força puramente subjetiva.” (p. 85)
- “Entretanto, para que a força de trabalho seja mercadoria e não o seja o próprio operário, é imprescindível que este último não venda sua força de trabalho senão por um curto prazo de cada vez, voltando a dispor dela após o término de cada transação contratual com este ou aquele capitalista.” (p.85)
                Segundo o autor, tanto Marx como Max Weber reconhecem no operário assalariado livre uma aparente ”liberdade”, mas que na verdade continua se sujeitando, de certa forma, a um trabalho forçado:
- “... o trabalhador pode ser abandonado às ‘leis naturais da produção’, isto é, à dependência do capital, engendrada, garantida e perpetuada pelas próprias condições da produção.” (p. 87)

CAPÍTULO VIII – LEI DA RENDA MONETÁRIA
               Forma predominante do excedente no escravismo colonial:
- “No escravismo colonial, a lei de apropriação do sobretrabalho formula-se da seguinte maneira: a exploração produtiva do escravo resulta no trabalho excedente convertido em renda monetária. Denomino de renda monetária aparte do excedente comercializado e transformada em certa quantidade de dinheiro.” (p.164)
- “(...) também produzia outra parte do excedente que conservava em sua forma natural, de bens que o senhor não destinava à comercialização, mas ao consumo direto de sua família e dependentes pessoais, esta parte do excedente recebe o nome de renda natural.” (p. 164)
-“As categorias de renda natural e renda monetária permitem estabelecer a diferença essencial entre dois tipos históricos de escravismo: o escravismo patriarcal e o escravismo mercantil ou colonial. Ambos basearam-se na forma completa de escravidão, mas constituíram modos de produção diferentes, com linhas de desenvolvimento peculiares.” (p.165)
                  O escravismo patriarcal:
- “(...) tem o conteúdo de escravidão produtiva, ainda que sua produção assuma a forma de bens de uso consumidos na própria unidade econômica.” (p. 166)
- “Em conseqüência, as necessidades concretas traçam um limite à produção e esta se resume em bens de uso, que satisfazem o consumo individual e asseguram a reprodução no próprio âmbito da unidade econômica.” (p. 167)
                   O escravismo colonial (um modo de produção dependente do mercado metropolitano):
- “O escravismo colonial só possibilita um mercado interno estreito,quase inelástico,inadequado aos fins da produção mercantil, que tende à especialização (...) sua solução constituía uma das premissas da plantagem colonial. A produção desta última se escoaria no mercado externo já existente e em ampliação,com uma demanda crescente de gêneros tropicais – o mercado da Europa.” (p. 169)
-“O escravismo colonial não comportava a mercantilização total, pois subsiste nele um setor de economia natural, porém o comércio intensificado não exerce efeito desagregador na sua estrutura. O escravismo colonial nasce e se desenvolve com o mercado como sua atmosfera vital” (p. 170, 171)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978. (p. 53-87 e 164-171)



domingo, 6 de junho de 2010

O Trato dos Viventes - Luiz Felipe Alencastro

Primeira postagem de hoje: Fichamento do Trato dos Viventes, de Luiz Felipe Alencastro:

 FICHAMENTO DO TEXTO: O TRATO DOS VIVENTES - FORMAÇÃO DO BRASIL NO ATLÂNTICO SUL – CAPÍTULOS I E II
                                ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000. (p. 11 - 48)
Por: Tamara Oswald




O APRENDIZADO DA COLONIZAÇÃO:
- “Ancorados em três continentes, às voltas com comunidades exóticas, os conquistadores ibéricos enveredaram por caminhos vários para se assegurar do controle dos nativos e do excedente econômico das conquistas. Nem sempre entroncaram na rede mercantil e no aparelho institucional reinol. Por isso, (...) as metrópoles reorientaram as correntes ultramarinas a fim de colonizar seus próprios colonos.” (p. 11)
- “Possuir e controlar os nativos não garantia a transformação do trabalho extorquido em mercadorias agregadas aos fluxos metropolitanos, nem afiançava o surgimento de economias tributárias no ultramar. (...) As transações oceânicas e o ascenso dos comerciantes faziam emergir novas forças sociais nas metrópoles e nas conquistas,alterando o equilíbrio das monarquias européias. ” (p.12)

CAMINHOS DOS COLONOS:
·       Peru: A luta pelo controle dos nativos provoca conflitos entre o clero, os colonos e a Coroa. Em 1542 as Leyes nuevas reconhecem a soberania dos índios e prevêem o fim do sistema de encomiendas e fazia os nativos dependerem diretamente da Coroa:
- “(...) essa política inovadora de governo indireto (...) contrariava concessões régias permitindo que os colonos levantassem, por sua conta, as primeiras paredes do edifício ultramarino. Desde logo espoucam insurreições no Peru nas décadas de 1540 a 1560. (...) No meio tempo, tropas fiéis à Coroa, mobilizadas e dirigidas pelo clero, haviam derrotado os colonos rebeldes. (...) os conquistadores ficavam com os índios dominados, mas aceitavam a tributação régia imposta às encomiendas. De seu lado, a coroa impedia a criação de feudos hereditários e impunha sua autoridade sobre as terras e populações conquistadas e por conquistar. (...) A partir de 1545 a prata de Potosí reorienta os fluxos de trocas americanos e permeabiliza o Peru à penetração comercial metropolitana” (p. 13)
·         Angola: Foi concedida em 1571 a Paulo Dias Novais como capitania hereditária. Paulo Dias, após ser abandonado pela metrópole depois do desastre de Alcácer Quibir concedeu terras, nativos e rendas aos conquistadores e jesuítas num sistema chamado de amos:
- “(...) esses novos feudatários cobravam tributos da população local (...) os tributos devidos pelos nativos costumavam ser quitados sob a forma de escravos que os amos – jesuítas e capitães- exportavam para a América. (...) o tráfico transatlântico de escravos emergia como a principal atividade da área, a Coroa retoma a colônia em mãos. A capitania hereditária é extinta, e um governador depositário direto da autoridade régia, recebe ordens para sustar a instituição dos amos. Inconformados, os conquistadores e os jesuítas se amotinam contra o governador (...). Excomungado pelos missionários e posto a ferro pelos rebeldes, o governador Francisco de Almeida acaba sendo expulso de Angola (...) seu irmão Jerônimo assume o governo angolano e suspende a ordem régia” (p.14)
·       Goa: Os colonos-negociantes faziam transações na rota da China e do Japão. Eram chamados de casados e tinham como oponentes soldados e comerciantes itinerantes chamados solteiros. Os casados impõem embargo aos cristãos-novos e indianos que se associavam aos funcionários portugueses nos portos da Ásia, para combater essa prática os jesuítas e as autoridades de Portugal fundam o Tribunal da Inquisição de Goa:
- “Enfrentando ainda os fidalgos (...) os casados tentam garfar toda a intermediação européia na Ásia. Aparentemente, a Coroa não tirava proveito disso, porquanto concede, em 1587, o monopólio do anil – principal trato de Goa - a um grupo de capitalistas sediados em Lisboa. Logo eclodem revoltas entre os casados. Goa será sacudida por motins sempre que a Coroa aumentar sua tributação ou tentar capitalizar as trocas com o golfo Pérsico e a Ásia(...)” (p. 15, 16)
·       Moçambique: Os primeiros portugueses reconhecem a autoridade dos soberanos locais, são detentores dos domínios ou prazos e confirmados nestes postos pelo imperador de Monotapa. A fragilidade do domínio lusitano neste território se mostra mais claramente:
- “Sorvidos paulatinamente pela sociedade nativa, os colonos se africanizam (...)” (p. 17)
- “(...) a emergente divisão intercolonial do trabalho fazia dos portos de trato do outro lado da África – e sobretudo de Angola – o mercado preferencial dos luso-brasileiros. Além das exportações (...) Moçambique ganhava ainda relevo por causa de sua situação de porto de escala na rota da Índia.” (p. 17)
- “A partir de 1626, os domínios da Zambézia deixam de ser possessões hereditárias. Convertidas em prazos da Coroa, as terras são cedidas aos colonos por um período de três gerações,ao término do qual a Coroa retoma a posse da propriedade.” (p. 17)
- “O traço original da política portuguesa na área será o contrato de enfiteuse pactuado entre a Coroa e o prazeiro. (...) esse contrato rezava que os prazos só seriam herdados em linha feminina. E unicamente quando a herdeira se dispusesse a casar com um morador nascido em Portugal, um reinol ou com o filho de um reinol.” (p. 18)
- “Consoante o costume dos mercadores árabes da época pré-européia, os capitães e governadores portugueses ofereciam um tributo – marca simbólica de vassalagem – ao Monotapa quando assumiam seus postos.” (p. 18)
Na América Portuguesa, a colonização foi diferente no que diz respeito à relação das tribos e dos conquistadores:
- “Revolvida pelo mercado atlântico, repovoada pelo tráfico negreiro, a América portuguesa não viu, nem de perto nem de longe brotar incidentes desse tipo. Nenhuma tribo sul-americana jamais deteve poderio suficiente para impor sua soberania e cobrar tributos regulares do colonato luso-brasileiro.” (p. 19)
Em 1534 foram tomadas medidas para a valorização e povoamento da América Portuguesa. A Coroa cedeu quinze capitanias hereditárias e para atrair candidatos concede prerrogativas extensas. Destas quinze, apenas duas prosperaram: Pernambuco e Porto Seguro. No governo-geral, um movimento de centralização reduz os privilégios donatariais:
- “Os laços da Colônia com o Atlântico são adrede retesados pelas ordens régias embaraçando o acesso ao trabalho indígena e estimulando o tráfico negreiro, como também pelas medidas freando as trocas entre as capitanias.” (p. 20)
Página 20 - O autor utiliza a expressão “anacronismo” para dar a idéia de uma “Terra que não era toda uma só”:
- “Por causa do sistema de ventos das correntes e do comércio predominantes no Atlântico Sul, até o final do século XVII, e mesmo depois desta data, a costa Leste-Oeste (...) permanece dissociada do miolo negreiro do Brasil, enquanto Angola se agrega fortemente a ele. Longe de qualquer devaneio da burocracia reinol, a criação do Estado do Grão-Pará e Maranhão decidida em 1621, com um governo separado do Estado do Brasil, responde perfeitamente ao enquadro da geografia comercial da época da navegação a vela.” (p. 20)
A Coroa começa a ir além do poder de domínio e reivindica o direito sobre as terras a conquistar e os povos conquistados.
- “No Peru, a decolagem mineira estanca o açodamento autonomista dos colonos, dá porosidade à economia regional e envolve o território andino nas carreiras oceânicas.” (p. 21)

REPAROS DA METRÓPOLE:
Na Europa, ainda no século XVI, crescem as tentativas de centralização do poder. Nos primeiros tempos da Descoberta, os investimentos efetuados não eram de exclusividade Portuguesa. Muito estrangeiros obtinham privilégios, por isso a monarquia inicia um movimento de “restauração metropolitana”:
- “Legal ou ilegalmente, metade, e talvez dois terços, do açúcar produzido no Brasil havia sido transportado pelos holandeses para Amsterdam até o início do século XVII. (...) De fato, o chamado ‘exclusivo colonial’ só se define após 1580. Unido ao trono espanhol, Portugal será arrastado para os conflitos europeus e, por ricochete, atacado no ultramar. (...) Todo o intercâmbio não metropolitano nas conquistas ultramarinas sofre embargo em 1605. Os estrangeiros residentes na América portuguesa tinham prazo de um ano para retornar ao Reino.” (p.22)
- “É o processo de colonização dos colonos: a Coroa aprende a fazer os rios coloniais correrem para o mar metropolitano; os colonos compreendem que o aprendizado da colonização deve coincidir com o aprendizado do mercado, o qual será – primeiro e sobretudo – o mercado reinol. Só assim podem se coordenar e se completar a dominação colonial e a exploração colonial.” (p. 22)
A Coroa portuguesa matinha controle sobre o clero secular através do jus patronatus, privilégios concedidos pelos papas aos reis ibéricos.
- “(...) a bula Romanus pontifex (1455) previa a excomunhão dos que furassem o monopólio ultramarino outorgado pelo papa Nicolau V ao rei d. Afonso V e ao infante d. Henrique.” (p. 23)
A ortodoxia religiosa é fator de força na colonização dos colonos:
- “Na sua estratégia de evangelização dos índios, os jesuítas entram em conflito com os colonos, com o episcopado e com a Coroa. Mas convém sublinhar o papel das missões como unidades de ocupação do território ultramarino. (...) na ausência de guarnições militares importantes no ultramar antes da segunda metade do século XVIII,cabia principalmente ao clero a tarefa de manter a lealdade dos povos coloniais às Coroas ibéricas.” (p. 24)
O papel da Inquisição é mais complexo e diversificado:
- “na metrópole, o Santo Ofício quase sempre aparece como máquina de guerra da aristocracia contra a burguesia mercantil-judaizante. (...) Em primeiro lugar, a inquisição portuguesa se caracteriza por concentrar seus esforços na punição ao judaísmo. Em segundo lugar, a atividade repressiva dos inquisidores contra tais delitos assume um ritmo mais constante em Angola e no Brasil que no Reino (...). Tendência que parece indicar uma repressão inquisitorial mais concentrada no meio formado pelos mercadores do Atlântico Sul. O fato é que negociantes importantes são denunciados no Brasil e levados acorrentados ao Santo ofício de Lisboa.” (p. 25)
- “Na América espanhola – ao contrário do sucedido no Brasil e na África portuguesa – foram instalados tribunais da inquisição em Lima (1570),no México (1571) e em Cartagena (1610).” (p. 25)
- “Sobressai um traço histórico do autoritarismo português. (...) a monarquia portuguesa persegue e pilha sua burguesia mercantil judaica e pseudojudaica: a Inquisição transformando-se, nas palavras do padre Antônio Vieira, numa ‘fábrica de judeus’, buscando ‘culpados’ para perpetrar roubalheiras e achacar comerciantes.” (p. 26-27)
- “Por meio da força oblíqua da Inquisição ou do zelo do clero, a Igreja ibérica desempenha um duplo papel. Ajuda a consolidar o dominium ao fixar o povoamento colonial nas regiões ultramarinas, e fortalece o imperium, na medida em que suscita a vassalagem dos povos do além-mar ao Reino.” (p. 27)
O centralismo político e o assentamento do “exclusivo colonial” prejudicam os mercadores estrangeiros. O controle espanhol está mais voltado à circulação de mercadorias, enquanto a metrópole portuguesa, através da introdução de trabalho africano, durante certo tempo comanda as operações do processo produtivo americano:
- “(...) os colonos devem recorrer à Metrópole para exportar suas mercadorias, mas também para importar seus fatores de produção (...). É certo que as guerras intermetropolitanas da segunda metade do século XVII levam Lisboa a armar frotas de comércio. (...) transportando para a Metrópole o açúcar e, sobretudo, o ouro brasileiro.” (p. 28)
- “(...) o trato negreiro não se reduz ao comércio de negros. De conseqüências decisivas, na formação histórica brasileira, o tráfico extrapola o registro das operações de compra,transporte e venda de africanos para moldar o conjunto da economia,da demografia, da sociedade e da política da América portuguesa.” (p. 29)

O ESCOPO DO COMÉRCIO PORTUGUÊS:
Segundo o Tratado de Alcáçovas em 1479, as ilhas Canárias que eram portuguesas passam aos espanhóis, e o monarca português é considerado o único soberano da Madeira, dos Açores, do reino de Fez, de Cabo verde e das terras ‘descobertas e por descobrir’ da Guiné:
- “Explorando o caráter cosmopolita aterritorial, do capital comercial acumulado nas praças européias, Portugal lança precocemente as bases de uma área imperial de mercado. (...) Na ausência de um excedente regular e incorporável às trocas marítimas, a Coroa (...) estimula a produção de mercadorias para a economia-mundo, dando origem a uma forma mais avançada de exploração colonial.” (p. 30)
O tráfico de africanos é uma rede que liga Portugal ao Médio e Extremo Oriente. Nas relações com a Ásia, Lisboa deveria fazer as trocas com ouro, prata e cobre, metais que eram escassos em Portugal. O comércio de escravos torna-se fonte de renda para o Tesouro Régio, sobrepondo os ganhos fiscais do trato aos ganhos econômicos da escravidão e também surge como vetor produtivo da agricultura das ilhas atlânticas:
- “No grande negócio negreiro, a demanda portuguesa de escravos – fosse ela metropolitana ou colonial – estava longe de reter a exclusividade. Escravos das conquistas africanas continuam a ser exportados para o estrangeiro com a finalidade de avolumar as receitas do Tesouro.” (p. 31)
- “Iniciada com base no trabalho compulsório indígena, a expansão açucareira brasileira será pouco a pouco tributária do africano e do comércio negreiro.” (p. 33)

INSTRUMENTOS DE POLÍTICA COLONIAL:
Os incentivos fiscais do Alvará de 1554 estimulam a edificação de engenhos e a importação de africanos a preços mínimos, aumentando o fluxo negreiro ao Brasil. O movimento de assentamento de estruturas, determinado pelo capitalismo comercial é ativado em níveis:
·       A metrópole se fortalece, pois o controle do trato negreiro lhe deixa no comando do sistema escravista:
- “A colonização será complementar e não concorrencial: o Brasil produzirá açúcar, o tabaco, o algodão, o café; a África portuguesa fornecerá os escravos.” (p. 35)
·       A Coroa e a administração régia encontram fontes de receita:
- “Tais rendas provêm dos direitos de saída dos portos africanos, dos direitos de entrada nos portos brasileiros, dos ‘donativos’, ’subsídios’, ‘preferências’, ‘alcavalas’ e outras taxas sucessivamente cobradas sobre os cativos” (p. 35, 36)
- “Devem ser também tomadas em conta outras vantagens que Portugal aufere de seu quase-monopólio sobre o negócio negreiro até meados do século XVII. Graças à posição dominante detida no setor, os portugueses penetram nas Índias de Castela, furando o monopólio espanhol sobre a prata, adquirindo ouro e especulando com produtos regionais (...)” (p. 36)
·       Enfrentamento opondo administração régia, jesuítas e moradores é contornado e a escravidão facilita a evangelização aliviando o cativeiro indígena e reduzindo a autonomia que era obtida pelos moradores através do controle do trabalho dos índios:
- “Nas áreas não penetradas pelo escravismo, onde predominava o trabalho compulsório indígena, os jesuítas estarão às turras com moradores. À medida que cresce o seu poder temporal, fundado no controle do crédito, na propriedade da terra e, sobretudo na Amazônia, no extrativismo e no controle dos índios, os padres da SJ ganham novos inimigos. (...) esse conflito demonstra a inviabilidade política dos enclaves americanos baseados no trabalho compulsório indígena e situados fora do controle metropolitano.” (p. 37)
·       Prática do escambo. Negociantes combinam vantagens próprias de uma posição de oligopsônio (na compra do açúcar) com as vantagens inerentes a uma situação de oligopólio (venda de escravos):
- “Apoiados pelos tratistas e funcionários régios de Angola,Costa da Mina e Guiné, os mercadores da América portuguesa facilitam a venda de escravos africanos – por meio do crédito aos fazendeiros – a fim de controlar a comercialização dos produtos agrícolas. (...) Em Luanda,e em outros portos de trato,as mercadorias de escambo são entregues aos intermediários com a condição de ser trocadas por escravos.” (p. 37)
·       Comércio externo da Colônia é dinamizado:
- “Dado que os lucros potenciais das fazendas e engenhos servem de garantia para a compra de novos fatores de produção (escravos),o excedente é investido produtivamente: os escravos representam um quinto do investimento num engenho de açúcar e metade do investimento dos lavradores de cana. Desde logo as unidades coloniais incorporam um mecanismo apto a garantir o crescimento regular das atividades.” (p. 38)
·       O recurso ao crédito e à compra de africanos se torna favorável aos moradores. A oferta de escravos se torna mais regular e flexível que a de índios:
- “Desde logo, o tráfico negreiro aumenta a morbidade e a mortalidade dos índios livres e cativos,levando os moradores a ampliar a demanda de africanos. (...) Segue-se um processo de repovoamento colonial e mercantil fundamentalmente baseado no implante de colonos europeus e de escravos africanos.” (p. 39, 40)

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O tráfico negreiro foi um comércio administrado:
- “Intencionais ou não-intencionais, os efeitos induzidos pelo tráfico negreiro geram a acumulação específica ao capitalismo comercial e à ‘Pax Lusitana’ no Atlântico. (...) o controle metropolitano sobre a reprodução da produção americana – ou melhor, a instância política do sistema colonial – tem um papel decisivo na organização econômica do Atlântico.” (p. 41)
- “Submetido durante três séculos à potência européia que maneja o maior mercado de africanos, o Brasil converte-se no maior importador de escravos do Novo Mundo (...)” (p. 42)

AFRICANOS, “OS ESCRAVOS DE GUINÉ”
Ásia e África (‘China e Mina’) foram as duas pontas da economia e da circulação portuguesa, pois eram sinônimos de negócio vantajoso e pouco risco. No início, o tráfico negreiro era feito apenas em alguns pontos do litoral africano, e os nativos eram capturados através de tocaias armadas pelos corsários:
- “percebe-se que a pilhagem (...) das aldeias africanas por corsários e piratas europeus não daria conta, por si só, da demanda escravista se avolumando na península Ibérica (...)” (p. 45)
- “Geografia comercial e história africana favorecem a penetração européia. Rios cursados pelos nativos, e em particular o Senegal, o Cacheu e o Gâmbia, traziam os escambos dos sertões para o litoral. Do rio Senegal se irradiava uma rede de trocas com a bacia do Níger, formando um sistema mercantil de rotas fluviais e terrestres que interligava a Senegâmbia e o golfo de guiné. (...) aqui reside uma diferença básica entre a África e a América pré-européias -, várias sociedades subsaarianas conheciam o valor mercantil do escravo.” (p. 46)
- “Portos e feiras de trato contribuem para ampliar o mercado negreiro na zona subsaariana. Mas não encontram similares na América portuguesa, onde jamais surgiram como pólos geradores do tráfico de indígenas.” (p. 47)
- “Brancos e mulatos apelidados lançados ou tangomaus varam rios da Alta Guiné permutando fazendas nativas e estrangeiras. Aventureiros, degredados ou cristãos-novos deportados, os lançados – correndo por fora do monopólio metropolitano – repercutem o impacto europeu para dentro das praias.” (p. 48)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000. (p. 11 - 48)